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Entrevista exclusiva com Leticia Santos, lateral brasileira do Eintracht Frankfurt

Na Alemanha há sete temporadas, Letícia Santos contrariou as estatísticas e tornou-se a jogadora brasileira mais longeva da história do Campeonato Alemão Feminino

Leticia Santos em ação pelo Eintracht Frankfurt (Reprodução)

Desde a fundação da Frauen-Bundesliga em 1991, nove atletas brasileiras estiveram em sua disputa mas, em sua maioria, de curtas passagensNa Alemanha há sete temporadas, Letícia Santos contrariou as estatísticas e tornou-se a jogadora brasileira mais longeva da história do Campeonato Alemão Feminino. 

Natural de Atibaia, no interior de São Paulo, a lateral do Eintracht Frankfurt teve seu interesse pelo futebol despertado na escola, ao ver os meninos do quarto ano jogarem. Foi então, com o apoio da família, que deu seus primeiros passos no esporte. De sua mãe, recebeu o que poderia ser o melhor presente do mundo àquele momento: uma bola. Tão logo, se matriculou em uma escolinha em Atibaia e iniciou sua trajetória nas quatro linhas. 

Mas somente aos 12 anos, ao acompanhar os jogos da Seleção Brasileira Feminina na Copa do Mundo de 2007, que se permitiu sonhar em ser jogadora profissional de futebol. A geração vice-campeã mundial pela amarelinha não à toa, é a grande inspiração da atibaiense: "Eu diria que a geração de 2007 e 2008 da Seleção Brasileira Feminina me inspirou muito, com a Marta, Cris, Formiga, Rosana". 

A partir daí, a jovem Letícia não pensava mais em outra coisa além de realizar o sonho de ser atleta e um dia vestir a amarelinha: “Quando comecei a jogar futebol, eu confesso que não tinha um plano B, eu queria ser jogadora de futebol profissional e era somente isso na minha cabeça.” Hoje, aos 29 anos, cursando Educação Física, já planeja o pós carreira: "Eu gostaria de permanecer no esporte. Auxiliar seria uma opção, mas tenho pensado bastante em ser, no futuro, psicóloga esportiva”.

Em 2022, Leticia Santos foi campeã da Copa América junto a Seleção Brasileira (Photo by RAUL ARBOLEDA/AFP via Getty Images)

De baixa estatura, a lateral foi o casamento perfeito para Letícia. A posição surgiu ao acaso em sua vida, ao participar de uma peneira no Palmeiras aos 15 anos de idade. Debaixo de muita chuva, Lê teve a expertise de se aventurar pelos lados do campo, chamando a atenção do treinador da equipe alviverde que lhe escolheu como sua lateral-direita. As condições, no entanto, não eram boas, o clube paulista sequer fornecia ajuda de custo. Após um período no time da capital, naturalmente, a jovem foi em busca de novos caminhos que lhe proporcionassem mais.

Passou por Santos, Bangu, XV de Piracicaba - onde faria sua estreia profissional - e Kindermann, até que chegasse ao São José, em 2014. 

Letícia, agachada ao centro, pelo Nhô Quim (Reprodução)

Na equipe do Vale do Paraíba viveu grandes momentos, conquistando Campeonato Paulista, Copa Libertadores e Mundial Interclubes. De lá, despontou ao futebol europeu para atuar no Avaldsnes IL, da Noruega. O novo país, de estilo de jogo, cultura e climas diferentes, não representaram um problema para a Letícia de 20 anos. A sua equipe era, dentre as norueguesas, a mais brasileira de todas, facilitando a adaptação. 

Após dois anos no Avaldsnes, deu o próximo passo ao ir para o futebol alemão para atuar no SC Sand do técnico Collin Bell, figura já conhecida pela jogadora. 

A principio, a mudança não foi fácil. Sozinha e em meio a segunda metade da temporada 2016/17, teve dificuldades: "Os primeiros cinco meses foram bem difíceis - cheguei no meio da temporada alemã - até me adaptar com o ritmo e filosofia deles e do clube, me custou perseverar bastante e ter paciência com o processo de adaptação". 

Em 2017, Leticia foi vice-campeã da Copa da Alemanha junto ao Sand (Photo by Mika Volkmann/Bongarts/Getty Images)

Passada a "tempestade" inicial, a paulista se estabeleceu como uma das principais laterais-direita da Frauen-Bundesliga e, em 2019, acertou sua transferência ao FFC Frankfurt (Eintracht Frankfurt desde 2020), onde está até hoje. 

Com contrato até o fim da temporada, Letícia despistou sobre uma possível extensão e deixou em aberto a possibilidade de retornar ao futebol brasileiro: "Pretendo sim voltar para o Brasil, hoje em dia o futebol feminino no Brasil cresceu muito, em visibilidade, a infraestrutura melhorou também, e com a proximidade da família me faz muito pensar em retornar pro Brasil".

Confira a entrevista completa com a lateral brasileira Leticia Santos, do Eintracht Frankfurt

Você chegou à Alemanha, em 2017, ainda muito nova, para atuar no SC Sand, oriunda do Avaldsnes IL, da Noruega. Na época, o Avaldsnes era uma equipe de "topo" na Noruega enquanto o Sand não passava de uma time de meio de tabela na Frauen-Bundesliga. Qual foi a sua principal motivação para esta mudança e como foi a sua adaptação ao país? O que você sente de diferente hoje na liga em relação a quando chegou?

 "A minha decisão, naquele momento, foi baseada em melhorar ainda mais o meu jogo. A liga alemã é uma das ligas mais fortes do futebol feminino e como eu já havia aprendido bastante na Noruega, achei que seria um passo importante na minha carreira, independentemente do SC Sand naquela época ser um time de meio da tabela. Os primeiros cinco meses foram bem difíceis - cheguei no meio da temporada alemã - até me adaptar com o ritmo e filosofia deles e do clube, me custou perseverar bastante e ter paciência com o processo de adaptação. A diferença de quando cheguei e agora que eu vejo é em relação a transmissão de jogos, que melhorou. Hoje, com mais canais de transmissão, as pessoas em outros países também podem acompanhar e conhecer a liga alemã que é uma liga muito boa e competitiva."

Já são sete temporadas atuando na Alemanha, de longe a brasileira mais longeva na história do futebol alemão feminino. Como você se sente em relação a isso? Durante este período, chegou alguma proposta que te fez cogitar uma mudança e, se sim, o que te fez optar por permanecer? Já existem conversas para uma extensão além desta temporada?

"Confesso que quando cheguei na Alemanha eu não esperava permanecer por tanto tempo. Me identifiquei e aprendi muito no futebol alemão. A intensidade de jogo que tem na liga foi um dos principais fatores que me fizeram continuar aqui. Mas como na vida há ciclos, tenho a percepção que será interessante algo novo pra mim, no futuro."

Ao todo, tivemos apenas nove jogadoras brasileiras atuando na Frauen-Bundesliga e a maioria delas não conseguiu se estabelecer na liga. O que você vê como fator determinante para tal? Você acha que em breve veremos mais brasileiras rumando e se estabelecendo no futebol alemão?

"É difícil dizer o porque as outras brasileiras não ficaram tanto tempo na Alemanha porque cada uma tem os seus motivos. Pra jogar na Alemanha você tem que estar disposta a se adaptar e entender um pouco a cultura deles. Aprender a língua alemã ajuda bastante nessa adaptação, e espero sim ver muitas outras brasileiras jogando na Alemanha, temos a Tainara no Bayern de Munique e seria muito bem ter outras brasileiras, especialmente no meu clube (risos)."

A partir da fusão do FFC Frankfurt com o Eintracht Frankfurt, internamente e estruturalmente, houveram grandes mudanças?

"Sim, e continuamos tendo cada vez mais mudanças, e pra melhor. Hoje, temos nosso próprio centro de treinamento quase todo pronto, a qualidade do campo onde treinamos, que pra mim é um grande passo, a forma como o clube nos trata sempre nos incluindo mais e mais dentro do clube para os torcedores cada vez mais nos conhecerem, nos sentimos muito respeitadas e cuidadas e acredito que isso está fazendo a diferença também na performance."

Infelizmente, você se lesionou gravemente na última temporada e acabou praticamente não atuando e perdendo a Copa do Mundo Feminina. Como você lidou mentalmente com essa situação? O período de reabilitação foi muito difícil?

"Foi um período muito difícil, porque na verdade eu tive que refazer uma cirurgia, depois de alguns meses sentindo um incômodo no joelho e descobrir que precisava novamente passar por uma cirurgia foi um golpe bem duro particularmente pra mim. Mas mesmo em meio a dor, vamos dizer mais emocional que eu estava sentindo naquele momento, eu sabia que aquele momento iria passar e, com fé, enxergar coisas boas que viriam e virá na minha carreira me ajudaram muito, meus pais e amigos próximos e lembrar da companhia de Jesus me fortalecia."

Desde o seu retorno, o técnico Niko Arnautis pouco te utilizou e, inclusive, recentemente esteve atuando pela equipe b na segunda divisão. Como você tem sido pra você essa situação? Houve alguma conversa específica com o treinador em torno disso?

"Aqui na Alemanha é normal uma jogadora, depois de tanto tempo de recuperação, jogar no time B para ganhar ritmo. Como infelizmente nos jogos amistosos da pré-temporada eu não pude jogar por ainda não estar liberada pelo departamento médico, acabei perdendo a chance de ganhar ritmo de jogo junto com minhas companheiras, e para chegar um pouco mais próxima do ritmo delas foi conversado de eu jogar para o time B para ter mais minutos e estar mais pronta para o time. E agora o time se encontra bem, preciso ter paciência e continuar trabalhando forte pra ter mais minutagem de jogo quando precisar."

Após o vice-campeonato da Seleção Alemã na Eurocopa, notou-se um crescimento do interesse do alemão pelo futebol feminino e isso tem refletido nos públicos nos estádios. Em jogos disputados no Deutsche Bank Park, embora não tenha lotado completamente, a torcida da SGE compareceu em bom número. Qual o seu sentimento e das demais jogadoras em relação a isso? Como é a relação do elenco com os torcedores do Eintracht?

"Com certeza aumentou o número de torcedores, e isso acredito que se dá pelo fato da visibilidade que agora o torcedor quer acompanhar de perto a jogadora que eles viram o desempenho pela tv, agora conhecem um pouco melhor as jogadoras e o futebol feminino e querem acompanhar no estádio também. O torcedor do Eintracht é realmente especial, nós amamos como eles são apaixonados e eles fazem a atmosfera nos jogos muito melhor, seja quando jogamos no Stadion am Bretanobad ou no Deutsche Bank Park." 

O Eintracht Frankfurt se estabeleceu como a terceira força do futebol alemão feminino, atrás de Wolfsburg e Bayern de Munique, mas ainda não consegue, de fato, incomodar esses dois na briga pelo título. O que você acha que falta para o Frankfurt dar este passo e voltar ao caminho das glórias? 

"Nos últimos dois, três anos, a gente vem demonstrando nosso crescimento com muito boas partidas e consequentemente resultados, e inclusive contra as potências Wolfsburg e Bayern tivemos bom desempenhos e até resultados positivos, nos dando confiança de que podemos, sim, sonhar e estabelecer objetivo maior que só a classificação para a Liga dos Campeões. O que o Bayern e o Wolfsburg em termos de infraestrutura já tem há anos, nós começamos a ter há dois, três anos anos. Acredito que com esse crescimento estrutural e de planejamento que estamos tendo aqui no Eintracht, juntamente com uma base de atletas que jogam juntas faz tempo, nós podemos nas próximas temporadas buscar também esse rótulo de potência alemã que o Wolfsburg e o Bayern têm."

Pela primeira vez desde 2015/16 - quando, na ocasião, foi semifinalista -, o Frankfurt disputará a Liga dos Campeões. O grupo com Barcelona, Benfica e Rosengard, é uma chave razoavelmente complicada. Até onde essa equipe é capaz de chegar? Disputar as três partidas como mandante no Deutsche Bank Park e não no Stadion am Brentanobad pode ser um fator decisivo nesta campanha?

"Nós somos uma equipe que realmente gosta de jogar juntas, sentimos prazer de jogar uma com a outra e temos confiança de que se continuarmos com essa sintonia juntas temos chances reais de classificação na fase de grupos. Obviamente não será fácil, Benfica e Rosengard já têm experiência nesse novo formato da Champions e também são concorrentes fortes pra essa outra vaga de classificação no nosso grupo. Mas, pensando jogo a jogo, desfrutando cada momento da Champions, vamos ver no final até onde poderemos alcançar e com certeza com a atmosfera do Deutsche Bank Park nos impulsiona e anima ainda mais pra ir mais longe na competição."

Falando de Seleção Brasileira, recentemente houve a troca no comando técnico e o Arthur Elias assumiu o cargo de treinador. Você teve alguma conversa com ele sobre um potencial retorno à amarelinha? Quais suas expectativas quanto a isto?

"Não tive conversas, mas como toda atleta brasileira tenho o objetivo de voltar a representar a Seleção Brasileira. É sempre um prazer, motivo de grande orgulho e realização de um sonho representar seu país, companheiras de profissão, e enquanto eu jogar, vou sempre buscar estar em alto nível para ter essa possibilidade de jogar pela seleção e representar bem."

Há algum tempo, algumas jogadoras alemãs de renome fizeram críticas à Federação e a imprensa pela forma como é tratado o futebol feminino. Temas como a falta de cobertura, priorização extrema do futebol masculino, profissionalização da modalidade - no caso, jogadoras viverem somente do esporte - foram alguns dos pontos abordados por elas. Como você enxerga isso? Há alguma companheira sua de equipe que exerce outra profissão além do futebol?

"No meu clube não, há somente atletas que conciliam com o estudo, inclusive eu que venho fazendo faculdade à distância (risos) - [Educação Física]. Mas, nós sabemos que em clubes menores há casos assim. E obviamente isso não é o ideal e por isso constantemente batemos na tecla que necessitamos estruturas adequadas de trabalho pra manter uma performance de alto rendimento. Não pedimos igualdade de salário em relação o futebol masculino, mas condições de trabalho ao menos parecidas, o básico para extrair o melhor do nosso potencial."

Hoje, você e a Tainara Silva (FC Bayern) são as únicas brasileiras jogando na Alemanha. Como é a relação de vocês? Existe uma proximidade?

"Temos uma relação boa, não nos falamos constantemente, teve alguns momentos em que nos escrevemos, e como Munique fica um pouco longe de Frankfurt e com agenda de jogos diferente, fica um pouco difícil de se encontrar."

Quais as suas maiores inspirações no futebol? 

"Eu diria que a geração de 2007 e 2008 da Seleção Brasileira Feminina me inspirou muito, com a Marta, Cris, Formiga, Rosana.. eu iria ficar aqui falando de todas elas (risos). Ronaldo Fenômeno também é uma inspiração não só pelo seu talento como pela história de superação. Difícil dizer só três nomes que me inspiraram… 

Se não fosse jogadora, qual profissão você gostaria de ter exercido e por quê?

Eu confesso que não sei. Antigamente, quando comecei a jogar futebol, eu confesso que não tinha um plano B, eu queria ser jogadora de futebol profissional e era somente isso na minha cabeça. Hoje, penso um pouco mais para o pós carreira de atleta de futebol, e eu gostaria de permanecer no esporte. Auxiliar seria uma opção, mas tenho pensado bastante em ser, no futuro, psicóloga esportiva, mas vamos ver, por enquanto só pensamentos (risos)."

Qual jogadora você enfrentou no futebol alemão que considera a mais difícil de marcar? E a melhor que jogou junto?

"Hum, pergunta difícil, mas eu falaria Jovana Damnjanovic (Bayern) - porque é um atacante de bastante energia, agressiva no bom sentido - e Memeti (Hoffenheim), que é rápida e sai bem para os dois lados e, como tem mesmo tamanho que eu, não gosto de atacantes de mesmo tamanho que eu (risos). Que joguei junto é ainda mais difícil de escolher, mas eu diria Milena Nikolic, na época do SC Sand, e Lara Prasnikar (Frankfurt)."

Você pretende voltar ao futebol brasileiro algum dia? Caso sim, o São José EC seria a prioridade, mesmo não sendo mais uma das principais equipes do país, ou existe algum outro clube que mexe com o coração? Qual a sua visão sobre o atual status da modalidade no Brasil?

"Pretendo sim voltar para o Brasil, hoje em dia o futebol feminino no Brasil cresceu muito, em visibilidade. A infraestrutura melhorou também, e com a proximidade da família me faz muito pensar em retornar pro Brasil. Tenho um carinho pelo São José EC, joguei lá há nove anos, foi meu último clube no Brasil, mas muita coisa mudou, então minha volta estaria em aberto para outro clube."

Atendendo a pedido do Fussball Brasil, a lateral deixou uma mensagem para os torcedores do Eintracht Frankfurt - que são muitos no Brasil - agradecendo o apoio e torcida às Águias.

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