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Como Ralf Rangnick transformou - e ainda pode transformar - o futebol alemão


No início do século, era a Alemanha quem se sentia atrasada taticamente em relação ao resto do mundo. E em qualquer explicação sobre como o futebol de lá deu a volta por cima entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, um nome precisa estar presente: Ralf Rangnick. Apesar de nunca ter vencido um título da Bundesliga, ele levou Hoffenheim e Leipzig a prateleiras que esses clubes nunca haviam alcançado e inspirou treinadores no país a colocarem em campo um estilo de jogo que ainda serve de modelo para as grandes equipes.

Difícil dissociar os sucessos da Alemanha no futebol durante o século XX da posição de líbero - basicamente, um jogador que ficava atrás dos zagueiros para ser o último obstáculo dos atacantes no caminho até o goleiro quando o time não tinha a bola. Franz Beckenbauer não só é o maior alemão que já calçou uma chuteira, mas também é símbolo dessa função e nela foi campeão mundial em 1974. Mais de 30 anos depois, ter um líbero ainda era quase uma regra nos campos da Bundesliga. O estranho era ter uma defesa com quatro jogadores marcando por zona, mesmo com parte da Europa indicando que esse era o futuro.

Foi necessária uma aparição de Rangnick na televisão em dezembro de 1998 para apresentar à Alemanha o que havia de novo no futebol. Movendo botões pra lá e pra cá em uma lousa, ele mostrou como a defesa por zona facilitava o trabalho da sua equipe para pressionar e não dar espaço para o adversário que tinha a bola (vídeo em alemão abaixo). Só anos depois a aula ganhou o devido reconhecimento. Afinal, quem estava lá falando era o então treinador do Ulm, da 2ª divisão. O desdém pela lição veio inclusive de Beckenbauer: "Toda essa conversa sobre o sistema não tem sentido", criticou o Kaiser após ver a sugestão de acabar com a posição que o consagrou.

O apreço pela por uma marcação em ritmo mais forte surgiu em 1983 a partir de um amistoso contra o Dynamo de Kiev do treinador Valeriy Lobanovskyi. Os primeiros minutos de jogo causaram estranhamento para Rangnick, então técnico do Viktoria Backnang, da sexta divisão. Os ucranianos estavam com 13 jogadores em campo? Não, mas era o que parecia. "Joguei contra grandes times antes - sempre perdíamos, é claro - mas eles pelo menos davam momentos ocasionais de respiro. O Kiev foi o primeiro time que enfrentei que pressionava a bola sistematicamente. Essa foi minha epifania futebolística", disse alemão ao The Coaches' Voices, lembrando uma das raízes do Gegenpressing, que virou marca registrada de Jürgen Klopp.

As grandes vitórias da carreira levaram um tempo. Com o Hoffenheim, ele saiu da terceira para a primeira divisão em questão de dois anos e o clube jogou na elite pela primeira vez em 2008/09. Com o Schalke, assumiu o trabalho na segunda metade da temporada, em março de 2011, e semanas depois estava na primeira semifinal de Champions League da história dos Azuis Reais. Para a temporada 2012/13, ele assumiu o cargo de diretor esportivo no Leipzig e - com algumas pontuais contribuições como treinador - ajudou o time escalar rapidamente, saindo da quarta divisão e dando à Bundesliga um participante inédito - mais uma vez.

Rotular Rangnick como rei do acesso é um caminho fácil, mas que não conta toda a história. Um dos seus grandes sucessos foi abrir os olhos do futebol alemão para o que acontecia ao seu redor. Em 1998, o Ulm já era apontado como dono de um estilo de jogo moderno. O seu treinador pode até não ter sido levado a sério num primeiro momento, mas fez o debate sobre a tática do jogo crescer. Poucos anos depois da sua explicação diante das câmeras, a maioria dos times da Bundesliga e a seleção da Alemanha já usavam uma defesa com quatro jogadores e marcação por zona. 

Cultivar um estilo de jogo moderno em um clube em formação era o desafio de Rangnick em Leipzig, e ele colheu um dos projetos de maior sucesso do futebol alemão nos anos 2010 - por mais críticas que podem ser feitas ao modelo de gestão da Red Bull dentro do contexto da Alemanha. Depois da ascensão meteórica, o clube foi vice-campeão em seu primeiro ano na Bundesliga, na temporada 2016/17, e se mantém entre os primeiros desde então. Rangnick conduziu grande parte desse processo como diretor esportivo, buscando jogadores novos e de alto potencial, e garantindo que o futebol em campo fosse atrativo.

Rangnick também colocou à prova sua capacidade como treinador na temporada 2018/19. Enquanto arrumava a casa para a chegada de Julian Nagelsmann, levou o time ao 3º lugar e à Champions League. Talvez ali tenha renascido seu desejo de estar na lateral do gramado a cada jogo e cada treinamento, o que provocou a sua despedida de Leipzig. O Milan parecia ser seu próximo destino, mas perdeu a chance de contar com o trabalho justamente de um dos primeiros seguidores das ideias de Arrigo Sacchi na Alemanha. Sorte de quem oferecer a ele um novo estádio para chamar de lar.

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